Igor
Ele levantava-se todas as manhãs
e nem sabia porquê, sabia apenas que tinha que o fazer, tudo era mecânico, uma
rotina que o mantinha em segurança.
Novo dia, mais páginas impressas
na velha máquina do jornal onde trabalhava. Brigite. Era assim que apelidara a
sua colega de trabalho mecânica e com ela passava larga parte da sua
existência.
O nome de fabrico parecera-lhe
impessoal e bastante comum entre todas as máquinas naquele enorme espaço. Igor
conhecia Brigite por dentro e por fora, responsável pelo seu funcionamento,
tratava dela como ninguém.
Acreditava que a forma humana
como interagia com ela, aumentava o seu rendimento. Não gostava da forma
mecânica como era tratado pela organização. Ao conversar continuamente com
Brigite abstraia-se e o tempo passava sem tanta dor.
Era seu hábito, ler para Brigite
cada pedaço de papel impresso e com ela comentava o que lia, o que pensava. Igor
fazia longos discursos e exuberantes intervenções para cada tema. Estes textos
eram a janela para o mundo.
Há muitos anos graças a este
trabalho, conseguira ganhar o que a infância havia retirado, o direito de poder
ler. Lembrava os anos em que sonhava saber ler, quando carregava pacotes da
mercearia vendo outros meninos carregando livros.
Seguira este sonho com todas as
suas forças, e novo começou a trabalhar no jornal, junto de Brigite. Arranjara
o sustento que a família precisava e encontrara o caminho que acreditava ser a
oportunidade para aprender a ler.
Longos foram os dias em que não
comera. Poupara todo o dinheiro que podia para pagar à professora que lhe
ensinava, todas as noites, as maravilhas do mundo das letras. Com muita vontade
e sede de conhecimento depressa pode começar a coordenar o que lia com o que
entendia.
Distante destes tempos, mantinha
a simplicidade com que vivia, as manhãs não mudavam, os gestos e os passos
repetiam-se. Chegava perto de Brigite e cumprimentava-a, seguia para o
vestiário, vestia o uniforme, forrado de óleo e massa, voltava com a sua caneca
de café, pegava na prova para impressão e lia em voz alta.
Porém, naquela manhã tudo foi
diferente, não sabia que o mundo iria desabar sobre os seus pés, ninguém o
informara. No trabalho, ele não conversava com ninguém, para além de Brigite.
O que lia falava da tecnologia
que chegaria em breve. Brigite seria reformada, não era mais rentável. A vida assim
não fazia mais sentido. Prostrado e invadido de desalento não conseguia reagir,
não comentava com Brigite esta notícia, não queria explicar.
Não era dia de a seduzir com
eloquência. Desviava o olhar, mantinha segredo e incomodado tentava escutar o
seu funcionamento. Procurava assegura-se da normalidade, mas o seu coração
batia forte. Queria poder sair, fugir, pensar. Precisava de tempo, era a sua
vida.
Noite de insónia, os pensamentos
e a ansiedade invadiam-no. Sabia que ele, tal como Brigite, eram de um tempo
diferente deste que surgia, que crescia em seu redor. Não sentia nem força, nem
vontade de o acompanhar. Desejava poder terminar a sua vida trabalhando perto
da sua companheira.
No jornal, Igor era estimado. Longe
das invejas e jogos de poder, mantinha-se discreto e desta forma, os anos
haviam passado tranquilamente. O seu estado de espírito passava sempre desapercebido
a todos os colegas. Era o que desejava perante toda esta agitação que sentia, e
refletir-se-ia somente na sua relação com Brigite. Ele teria de continuar
fingindo que nada se passava.
Igor não sabia ao certo o que
fazer, como poder demonstrar que apesar de ultrapassada, Brigite era parte de
uma história, representava uma época em que os jornais também puderam ser
impressos.
Aceitava o progresso e
lembrava-se perfeitamente de ouvir falar no choque que Brigite tinha causado
quando chegara ao Jornal, vinda de fora e acompanhada de meia dúzia de técnicos
para a montar e a colocar em funcionamento. Brigite havia sido naqueles tempos,
o reflexo de uma nova era. Agora o ciclo voltava a passar pelo jornal.
Os dias passaram e o trabalho
continuou com normalidade. A rotina tinha acabado por devolver Igor aos seus
comentários, a que Brigite respondia com os sons surdos das correntes e dos
rolamentos. Nesse diálogo entre homem e máquina, surge numa manhã o Patrão que,
de tempos em tempos, gostava de contemplar Igor e Brigite.
O Patrão raramente falava, apenas
se sentava a ouvi-los enquanto meditava. Ambos haviam criado uma empatia,
baseada nessa cumplicidade de dedicação ao jornal. Apesar de representarem dois
lados distintos da organização, ambos se entregavam ao trabalho por gosto
pessoal. E contrariando a regra, eis que que o Patrão pergunta a Igor.
Patrão – O Igor sabe das mudanças
que estão para chegar ao jornal?
Igor – Sei sim Senhor!
Patrão – O que pensa disso?
Igor - São os sinais do tempo, temos de acompanhar o progresso para
continuar presentes. Nem eu nem Brigite fazemos mais parte desta nova
realidade.
Patrão – Eu sinto o mesmo, esta transformação chegou para me libertar.
Igor – Senhor, o que conheço do mundo é o que sai deste papel impresso.
Tudo o que aprendi foi aqui neste lugar, agora restarão as memórias.
Patrão – Igor, conto consigo para me ajudar a preservar essa memória.
Os dias que se seguiram passaram
em alvoroço, chegaram desta vez mais técnicos e engenheiros, avaliaram o espaço
desmontaram máquinas, levantaram paredes, reformaram o espaço para a nova
realidade. Igor e Brigite mantiveram-se presentes, Ele assistia curioso ao
processo, enquanto o seu espaço era igualmente recondicionado.
Mais tarde ficaram isolados da
linha de produção e o som das máquinas foi substituído pelo som de perguntas
curiosas de criança e adultos que fascinados visitavam este museu vivo. Igor
sorria, enchia os pulmões de ar e mantinha a sua rotina com Brigite, a estrela,
a sua amiga.
Anos depois Igor morreu. O Patrão
sabia que Brigite precisava de sentir a presença de Igor para a eternidade e mandou
instalar uma tela para projetar os filmes que colecionara durante a vida.