domingo, 16 de novembro de 2014

Igor


Ele levantava-se todas as manhãs e nem sabia porquê, sabia apenas que tinha que o fazer, tudo era mecânico, uma rotina que o mantinha em segurança.

Novo dia, mais páginas impressas na velha máquina do jornal onde trabalhava. Brigite. Era assim que apelidara a sua colega de trabalho mecânica e com ela passava larga parte da sua existência.

O nome de fabrico parecera-lhe impessoal e bastante comum entre todas as máquinas naquele enorme espaço. Igor conhecia Brigite por dentro e por fora, responsável pelo seu funcionamento, tratava dela como ninguém.

Acreditava que a forma humana como interagia com ela, aumentava o seu rendimento. Não gostava da forma mecânica como era tratado pela organização. Ao conversar continuamente com Brigite abstraia-se e o tempo passava sem tanta dor.

Era seu hábito, ler para Brigite cada pedaço de papel impresso e com ela comentava o que lia, o que pensava. Igor fazia longos discursos e exuberantes intervenções para cada tema. Estes textos eram a janela para o mundo.

Há muitos anos graças a este trabalho, conseguira ganhar o que a infância havia retirado, o direito de poder ler. Lembrava os anos em que sonhava saber ler, quando carregava pacotes da mercearia vendo outros meninos carregando livros.

Seguira este sonho com todas as suas forças, e novo começou a trabalhar no jornal, junto de Brigite. Arranjara o sustento que a família precisava e encontrara o caminho que acreditava ser a oportunidade para aprender a ler.

Longos foram os dias em que não comera. Poupara todo o dinheiro que podia para pagar à professora que lhe ensinava, todas as noites, as maravilhas do mundo das letras. Com muita vontade e sede de conhecimento depressa pode começar a coordenar o que lia com o que entendia.

Distante destes tempos, mantinha a simplicidade com que vivia, as manhãs não mudavam, os gestos e os passos repetiam-se. Chegava perto de Brigite e cumprimentava-a, seguia para o vestiário, vestia o uniforme, forrado de óleo e massa, voltava com a sua caneca de café, pegava na prova para impressão e lia em voz alta.

Porém, naquela manhã tudo foi diferente, não sabia que o mundo iria desabar sobre os seus pés, ninguém o informara. No trabalho, ele não conversava com ninguém, para além de Brigite.

O que lia falava da tecnologia que chegaria em breve. Brigite seria reformada, não era mais rentável. A vida assim não fazia mais sentido. Prostrado e invadido de desalento não conseguia reagir, não comentava com Brigite esta notícia, não queria explicar.

Não era dia de a seduzir com eloquência. Desviava o olhar, mantinha segredo e incomodado tentava escutar o seu funcionamento. Procurava assegura-se da normalidade, mas o seu coração batia forte. Queria poder sair, fugir, pensar. Precisava de tempo, era a sua vida.

Noite de insónia, os pensamentos e a ansiedade invadiam-no. Sabia que ele, tal como Brigite, eram de um tempo diferente deste que surgia, que crescia em seu redor. Não sentia nem força, nem vontade de o acompanhar. Desejava poder terminar a sua vida trabalhando perto da sua companheira.

No jornal, Igor era estimado. Longe das invejas e jogos de poder, mantinha-se discreto e desta forma, os anos haviam passado tranquilamente. O seu estado de espírito passava sempre desapercebido a todos os colegas. Era o que desejava perante toda esta agitação que sentia, e refletir-se-ia somente na sua relação com Brigite. Ele teria de continuar fingindo que nada se passava.

Igor não sabia ao certo o que fazer, como poder demonstrar que apesar de ultrapassada, Brigite era parte de uma história, representava uma época em que os jornais também puderam ser impressos.

Aceitava o progresso e lembrava-se perfeitamente de ouvir falar no choque que Brigite tinha causado quando chegara ao Jornal, vinda de fora e acompanhada de meia dúzia de técnicos para a montar e a colocar em funcionamento. Brigite havia sido naqueles tempos, o reflexo de uma nova era. Agora o ciclo voltava a passar pelo jornal.

Os dias passaram e o trabalho continuou com normalidade. A rotina tinha acabado por devolver Igor aos seus comentários, a que Brigite respondia com os sons surdos das correntes e dos rolamentos. Nesse diálogo entre homem e máquina, surge numa manhã o Patrão que, de tempos em tempos, gostava de contemplar Igor e Brigite.

O Patrão raramente falava, apenas se sentava a ouvi-los enquanto meditava. Ambos haviam criado uma empatia, baseada nessa cumplicidade de dedicação ao jornal. Apesar de representarem dois lados distintos da organização, ambos se entregavam ao trabalho por gosto pessoal. E contrariando a regra, eis que que o Patrão pergunta a Igor.

Patrão – O Igor sabe das mudanças que estão para chegar ao jornal?

Igor – Sei sim Senhor!

Patrão – O que pensa disso?

Igor - São os sinais do tempo, temos de acompanhar o progresso para continuar presentes. Nem eu nem Brigite fazemos mais parte desta nova realidade.

Patrão – Eu sinto o mesmo, esta transformação chegou para me libertar.

Igor – Senhor, o que conheço do mundo é o que sai deste papel impresso. Tudo o que aprendi foi aqui neste lugar, agora restarão as memórias.

Patrão – Igor, conto consigo para me ajudar a preservar essa memória.

Os dias que se seguiram passaram em alvoroço, chegaram desta vez mais técnicos e engenheiros, avaliaram o espaço desmontaram máquinas, levantaram paredes, reformaram o espaço para a nova realidade. Igor e Brigite mantiveram-se presentes, Ele assistia curioso ao processo, enquanto o seu espaço era igualmente recondicionado.

Mais tarde ficaram isolados da linha de produção e o som das máquinas foi substituído pelo som de perguntas curiosas de criança e adultos que fascinados visitavam este museu vivo. Igor sorria, enchia os pulmões de ar e mantinha a sua rotina com Brigite, a estrela, a sua amiga.

Anos depois Igor morreu. O Patrão sabia que Brigite precisava de sentir a presença de Igor para a eternidade e mandou instalar uma tela para projetar os filmes que colecionara durante a vida.