quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014


                                                           A DOAÇÃO

Um breve ruído e de repente do altifalante ouve-se um mal pronunciado, Tiago Matrinxã. Ele já habituado levanta-se, agora era tarde demais para tentar com algum vigor corrigir o apelido. O seu objetivo era outro e não poderia falhar. Aliás, tinha preparado tudo minunciosamente durante aqueles grandes e penosos seis meses. Tinha então chegado o dia planeado, vencera a última prestação do computador. Estava livre!

Á porta da sala de espera parou de repente, abriu um pedaço de papel já gasto, tirou a caneta bic do bolso e riscou a última linha da sua extensa lista. Em seguida, verificou se tudo estava riscado, dobrou o papel, deitou-o no lixo e saiu.

Havia já 6 longos meses que elaborara esta lista, que seguia com um rigor quase que inumano. Ele tornara-se uma máquina determinada a executar o seu destino, desde aquele dia em que toda a sua esperança se dissipara.

Muito tinha mudado, desde o primeiro dia do ano de 1996, em que levado pelo espírito negativo da mãe, a insensibilidade do pai, decidira transformar toda a sua vida.

Criara então uma lista num papel tirado de um bloco de apontamentos, no qual estava timbrado “NÃO ESQUECER!”. Escrevera como primeiro ponto Saúde, não fosse o seu plano pecar pelo mais importante. Durante esses seis meses, Tiago dividira-se por enumeras consultas médicas. Para manter o seu corpo são e isento de toxinas, deixara mesmo de ingerir álcool e café. Não fumava o que já lhe poupava um sacrifício. Tornara o seu corpo ligeiramente barrigudo num corpo atlético, fizera imenso exercício. O seu estado físico era invejável.

O segundo ponto, Tiago dividira-o em seis subpontos, pois que eram seis as prestações que faltavam para pagar o maldito computador, o que o obrigara a pacientemente esperar tanto tempo. Só assim, poderia executar o seu plano, que culminava no dia 3 de junho. Dia do último pagamento.

Depois de meia hora sentado na sala de espera daquele terrível hospital, apesar do bafo quente daquela tarde de verão, ele mantivera-se imune, nem uma gota lhe escoria da testa. Agora serenamente em frente à porta da secção dos homens do bloco de urgências aguardava que o mandassem entrar. Tiago estava pronto, todos os seus pontos, subpontos e alíneas tinham sido escrupulosamente cumpridos, todas as tarefas executadas e riscadas.

O saxofone estava vendido, o carro também. O dinheiro resultante dessas vendas estava depositado numa conta em nome da sua sobrinha. Tinha imposto que só ela pudesse beneficiar e utilizar o dinheiro quando fizesse os seus quinze anos. Escolhera os quinze anos pois queria, também nesse ponto marcar a sua diferença.

Desiludido com tudo e com todos, decidira separar-se de ambos. Os seus “amigos” tinham-no esquecido desde que ele deixara de frequentar e viver as noites de copos. Ninguém se preocupara em lhe telefonar. Só, começara um período de autoanalise, procurava entender-se, descobrir-se. Lia então, tentava perceber e interpretar nas personagens, o seu próprio medo, a sua angustia de viver. A solidão era-lhe cada vez mais profunda, nada o agradava, nem o curso que em breve terminaria. Toda esta imensa dúvida sobre a sua própria existência o tinham posto em cheque com o seu comportamento, já não sabia o que fazer. Começara uns cinco anos antes um curso superior, aliás o que sempre quisera, mas agora que punha em causa todas as suas escolhas, bloqueara.

Vendera os seus poucos bens e depositara o respectivo valor no banco afim de beneficiar a sobrinha. Ela tudo e bem o merecia, pois nunca o desiludira. O seu computador, tinha-o entregue nesse mesmo dia à biblioteca do bairro. Era o local que tinha escolhido para doar o seu grande investimento. Resolvera dar e doar tudo o que possuía e recomeçar uma nova vida.

Longos tinham sido estes 181 dias em que não conseguira concentrar-se em nada que não fosse o seu objetivo de se libertar de si.

Ao longe o médico manda-o entrar. Enquanto que Tiago se aproxima, o médico observa-o rapidamente de alto abaixo tentando diagnostica-lo previamente, o que era verdadeiramente difícil uma vez que o seu estado de saúde não inspirava cuidados.

- Boa noite senhor Doutor - disse Tiago.
- De que se queixa o senhor? - pergunta-lhe o médico com uma voz fatigada, talvez de uma noite de banco.

Tiago, então sem vacilar e de uma única vez, responde com uma voz firme - o senhor Dr. prepare a sala de operações, que eu quero doar todos os meus órgãos!

Ele decorara esta frase e dissera-a sem qualquer tremular e ansiedade, mantinha-se sereno e estranhamente calmo. Por sua vez o médico totalmente confuso entrou em ebulição. Chegado o auxílio, era já tarde demais, Tiago acabara de disparar um tiro mortal na têmpera direita. Por todo o lado só se viam bocados do seu cérebro desfeito.

NOTA: Soube por fontes confidenciais que lhe encontraram na carteira, minutos depois, um bilhete manuscrito e sub assinado com o seu nome. Tive então a oportunidade de ler esse bilhete, dizia:

 
                     Exmos Senhores

                        Infelizmente não vos posso doar o meu cérebro.

                        Não quero que ninguém sofra o que eu sofri!

                                               Lisboa, 3 de Junho de 1996

                                               Tiago Matrinxã

 

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