quarta-feira, 4 de março de 2015


Luz


A tua genialidade tocava a loucura, mas nem te apercebias sequer da forma como te movimentavas, abstraída que estavas no teu mundo. Esqueceras do dia em que deixaras de te preocupar, de te comparar, do dia em que escolheras viver feliz.

Sempre que passavas à frente da loja dos meus pais eu ficava fascinado, como se transportasses o arco-íris. Eu queria mas temia falar contigo, sabia apenas que desejava poder te conhecer. Raramente entravas na loja, mas sorrias ao passar e eu retribuía.
Por ocasião daquele trabalho da escola, decidi ganhar coragem e fui ter contigo, pedi para me ajudares, recordas-te?

Eu – Olá, sou o Pedro, filho do marceneiro, podes me ajudar a fazer um trabalho para a escola?

Luz – Sei quem és, mas porque vieste ter comigo?

Eu – Todos vão falar das profissões dos pais ... e eu quero descrever um artista, descobrir o que fazes para explicar aos meus colegas. Importas-te?

Luz – Será uma honra e também vai ser um desafio para mim, pois nunca partilhei uma experiência destas. Entra e fica à vontade.

Assim que entrei no teu atelier, senti-me invadido pelo ambiente, tal como se de um sonho se tratasse, entrei numa viagem mágica, da qual ainda hoje penso não ter saído jamais. A minha vida mudou certamente neste momento.

No vazio monumental de uma longa nave dispuseras blocos de mármore, no qual o sol refletia nessa luminosidade da manhã primaveril, pela parede estavam fixados esboços que eu observava encantado.

Eu – O que são estes desenhos?

Luz – Ideias para transformar estes blocos que vês aqui, como esta que já comecei.
Maravilhado imaginei como seria esta transformação tridimensional das gravuras, desejei poder acompanhar todos os momentos da sua materialização.

Eu – Quanto tempo levas a fazer isso? Pergunto isso porque gostava de ter tempo de ver até terminar o trabalho.

Luz – Nunca sei, depende de tanta coisa ... de um sonho, da tristeza ou do amor, mas vamos combinar uma coisa. Podes continuar a visitar-me depois do trabalho se quiseres. A tua presença trouxe-me hoje bem estar. Queres?

Eu – Quero sim, muito obrigado. O teu nome é mesmo Luz? Aqui neste espaço, parece mais do que nunca.

Luz – O meu Pai, trata-me assim, diz que eu sou a sua estrela.

Eu – O meu Pai trata-me só por Pedro!

Lembro que nessa tarde fui feliz para casa, na certeza de ter iniciado uma grande aventura. Era bom aluno e os meus pais ocupados com as suas tarefas davam-me liberdade para crescer, portanto, mantive o meu projeto de escola em segredo. Na escola, não era difícil manter a distância que me habituara a viver de rejeição e isolamento.

Todas as tardes, saía da escola correndo para te encontrar, sabia onde encontrar a chave e tu lá estavas moldando vida. Eu sentava-me e contemplava, observava cada gesto teu.

Eu – Luz, quando soubeste que ias ser artista?

Luz – Um dia, mais nova do que tu, fui a um museu gigante, onde vi as mais belas figuras que para o meu tamanho, pareciam tocar no tecto. Os meus desenhos nunca mais deixaram de ter grandes figuras. À medida que crescia, os pormenores mudavam, mas mantinham-se grandes e carregavam como a primeira vez, a magia daquela experiência.

Eu – Queres dizer que se não tivesses ido visitar o museu não serias o que és hoje?

Luz – Nunca pensei nisso, talvez tenhas razão. Prefiro pensar que não fui por acaso. E tu Pedro, o que és neste momento, sabes? O que serás dentro de uns anos?

Sempre soube que nunca acompanharia as outras crianças. Em pequeno tive muito tempo no hospital com uma doença que me atacou. Depois cresci, mas sempre impedido de fazer exercício fui sendo afastado dos grupos de rapazes audazes e agitados e das meninas que os admiravam.

A escola sempre foi essa etapa que desejei pular, mas que levava porque adorava aprender, conhecer, crescer. Sabia que seria a minha porta para fugir para um mundo melhor. Tantas vezes me interrogava da minha existência, o que é natural nessas idades, não tinha aqueles desejos infantis de ser bombeiro, desejava ser diferente, pois era naturalmente diferente.

Eu – Sinto que sou diferente dos outros da minha idade, não os entendo e eles não me entendem. Sonho que não pertenço aqui, sei que um dia vou sair quando terminar a escola.

Luz – percebo o que dizes... é bom conhecer outros lugares, viver outras vidas, quem sabe não voltas para mostrar no que te tornaste?

Essa conversa acompanhou-me por tantos anos, que ainda hoje, ao escrever me recordo de me ter despedido com este sentimento de ter finalmente encontrado alguém que me entendia e principalmente, que me aceitava naturalmente sem me julgar. Estava radiante e passei a meditar em voz alta com quem me podia ouvir.

O semestre passou e o meu trabalho também, tive boa nota, a professora adorou e felicitou-me e os colegas não. Mesmo assim, continuei a frequentar o teu atelier, os blocos perdiam volume e as tuas peças ganhavam forma. Eu aprendia vendo como utilizavas cada utensílio, os teus gestos. Ao teu lado observava de longe cada ângulo tentando alcançar o que procuravas visualizar e me transmitias com essa doçura sempre alegre. Ficava surpreendido ao ver-te, mulher com esse corpo delgado e mãos finas, conseguir desfazer gigantes paredes de pedra, como se de gelo se tratasse.

Eu – Quando acabares estas esculturas, como as vais apresentar, são enormes, como as irás transportar, como vão poder ver tanta beleza?

Luz – Esse projeto é apoiado por um mecenas que financia muitas bolsas, que me permite poder criar. Ele virá buscar as peças e vai coloca-las num jardim para exposição.

Eu – Vai ser certamente um sucesso! Gostava de poder te acompanhar.

Luz – Pedro, cada obra destas traz um pedaço de ti, pois tu ajudaste-me a cria-las, foi na tua companhia e conversando contigo, pensando aqui em ti tantas vezes sozinha que dei forma a cada uma delas. Tu estás presente nelas, e assim ficarás enquanto elas se mantiverem eternas.

Eu – Mas ninguém mais saberá disso, pois não?

Luz – Não precisam de saber, eles apenas vão ver um produto acabado, desconhecem o amor e as emoções que as acompanham, mas tu e eu não. E isto nos manterá unidos, pois para nós elas terão vida e falarão para nós.


Entendo hoje passados tantos anos, as tuas mensagens. Sinto que o que crio transporta a magia imortal que me une a pessoas ou momentos. Este desfile que hoje apresentei vestiu cada uma das esculturas que deixaste naquele jardim. Faz anos que venho visita-las para te falar.


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